A discussão nos leva naturalmente à consideração de Satanás e dos demônios, já que eles são anjos maus que anteriormente foram anjos bons, mas que pecaram e perderam o seu privilégio de servir a Deus. Iguais aos anjos, eles também são seres espirituais criados com juízo moral e com alta inteligência, mas sem corpos físicos. Podemos definir os demônios da seguinte e maneira: Os demônios são anjos maus que pecaram contra Deus e que agora operam continuamente o mal no mundo.
Quando Deus criou o mundo, ele “viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom” (Gn 1.3 1). Isso significa que mesmo o mundo angelical que Deus havia criado não possuía anjos maus nem demônios àquela altura. Mas, quando chegamos a Gênesis 3 , percebemos que Satanás, na forma de uma serpente, tentou Eva para que pecasse (Gn 3.1-5). Portanto, em um determinado tempo entre os eventos de Gênesis 1.31 e Gênesis 3.1 , deve ter havido uma rebelião no mundo angelical, com muitos anjos se voltando contra Deus e tornando-se maus.
O NT fala disso em dois lugares. Pedro nos diz que “Deus não poupou a anjos que pecaram, mas os lançou no inferno, prendendo-os em abismos tenebrosos a fim de serem reservados para o juízo” (2Pe 2.4) . Judas também diz que “quanto aos anjos que não conservaram suas posições de autoridade mas abandonaram sua própria morada, ele os tem guardado em trevas, presos com correntes eternas para o juízo do grande Dia” (Jd 6). Uma vez mais a ênfase recai sobre o fato de que eles são removidos da glória da presença de Deus e sua atividade é restringida (metaforicamente, eles estão em “correntes eternas”), mas o texto não sugere que a influência dos demônios tenha sido removida do mundo ou que alguns demônios sejam guardados em um lugar de punição à parte do mundo, enquanto outros são capazes de influenciá-lo.Ao contrário, tanto 2Pedro como Judas nos dizem que alguns anjos se rebelaram contra Deus e se tornaram oponentes hostis à sua palavra. O pecado deles parece ter sido o do orgulho, a recusa em aceitar seu lugar designado, pois eles “não conservaram suas posições de autoridade mas abandonaram sua própria morada” (Jd 6).
É também possível que haja uma referência à queda de Satanás, o príncipe dos demônios, em Isaías 14 . Conforme Isaías descreve o juízo de Deus sobre o rei da Babilônia (um rei humano, terreno), ele chega à seção onde começa a usar uma linguagem que parece forte demais para referir-se meramente a um ser humano:
Como você caiu dos céus, ó estrela da manhã, filho da alvorada! Como foi atirado à terra, você, que derrubava as nações! Você, que dizia no seu coração: ‘Subirei aos céus; erguerei o meu trono acima das estrelas de Deus; eu me assentarei no monte da assembléia, no ponto mais elevado do monte santo. Subirei mais alto que as mais altas nuvens; serei como o Altíssimo’. Mas às profundezas do Sheol você será levado, irá ao fundo do abismo! (Is 14.12-15; cf. Ez 28.11-19).
Essa linguagem de subir ao céu e assentar-se no trono acima das estrelas e dizer “serei semelhante ao Altíssimo” sugere enfaticamente a rebelião de uma criatura angélica de grande poder e (isso não significa que esses anjos pecaminosos não exerçam atualmente influência no mundo, pois no versículo 9 Pedro diz que o Senhor também “sabe livrar os piedosos da provação e manter em castigo os ímpios para o dia de juízo”, referindo-se aos seres humanos pecaminosos que obviamente ainda tinham influência no mundo e até causam problema para os leitores de Pedro. O versículo 4 simplesmente significa que os anjos ímpios haviam sido removidos da presença de Deus e permanecem guardados debaixo de alguma espécie de influência restritiva e até o juízo final, o que, entretanto, não anula a sua atividade contínua no mundo nesse meio-tempo.)dignidade. Não seria incomum para a linguagem profética hebraica passar das descrições de eventos humanos para descrições de eventos celestiais que lhes são paralelos e que os eventos da terra ilustram de modo limitado. Se assim for, então o pecado de Satanás é descrito como orgulho e tentativa de ser igual a Deus em posição e autoridade.
Satanás como cabeça dos demônios
“Satanás” é o nome pessoal do cabeça dos demônios. Esse nome é mencionado em Jó 1.6, onde “os anjos vieram apresentar-se ao SENHOR, e Satanás também veio com eles” (v. tb. Jó 1.7—2.7). Aqui ele aparece como o inimigo do Senhor que traz severas provações para Jó. De modo semelhante, ao final da vida de Davi, “Satanás levantou-se contra Israel e levou Davi a fazer um recenseamento do povo” (1 Cr 21.1). Além disso, Zacarias teve uma visão do “sumo sacerdote Josué diante do anjo do SENHOR, e Satanás, à sua direita, para acusá-lo” (Zc 3.1). O nome “Satanás” é uma palavra hebraica (sãtãn) que significa “adversário”. O NT também usa o nome “Satanás”, tomando-o simplesmente do AT. Assim, Jesus, em sua tentação no deserto, fala a Satanás diretamente, dizendo: “Retire-se, Satanás!” (Mt 4.10), ou “Eu vi Satanás caindo do céu como relâmpago” (Lc 10.18).
A Bíblia usa também outros nomes para Satanás. Ele é chamado: “Diabo” (somente no NT: Mt 4.1; 13.39; 25.41; Ap 12.9; 20.2; etc.); ”serpente” (Gn 3.1,14; 2Co 11.3; Ap 12.9; 20.2); ”Belzebu” (Mt 10.25; 12.24,27; Lc 1 l.15); ”o príncipe deste mundo” (Jo 12.31; 14.30; 16.1 l), ”príncipe do poder do ar” (Ef 2.2), ou “o Maligno” (Mt 13.19; 1Jo 2.13). Quando Jesus diz a Pedro: “Para trás de mim, Satanás! Você é uma pedra de tropeço para mim, e não pensa nas coisas de Deus, mas nas dos homens” (Mt 16.23), ele reconhece que a tentativa de Pedro de tentar preservá-lo do sofrimento e da agonia da cruz é realmente uma tentativa de impedir Jesus de obedecer ao plano de seu Pai. Jesus percebe que a oposição, em última instância, não vinha de Pedro, mas do próprio Satanás.
A atividade de Satanás e dos demônios
Satanás foi o originador do pecado.
Satanás pecou antes de os seres humanos terem caído, como fica evidente no fato de que ele (na forma de uma serpente) tentou Eva (Gn 3.1-6; 2Co 11.3). O NT também nos informa que Satanás “foi homicida desde o princípio” e que ele é ”mentiroso e pai da mentira” (Jo 8.44). Ele diz igualmente que o Diabo “vem pecando desde o princípio” (lJo 3.8). Em ambos os textos, a frase “desde o princípio” não sugere que Satanás tenha sido mau desde o tempo em que Deus começou a criar o mundo (“desde o princípio do mundo”) ou desde o começo de sua existência (“do princípio de sua vida”), mas sim desde o começo da história do mundo (Gn 3 e mesmo antes). A característica do Diabo tem sido a de originar o pecado e a de induzir outros a pecar.
Os demônios se opõem e tentam destruir, toda obra de Deus.
Assim como Satanás induziu Eva a pecar contra Deus (Gn 3.1-6), ele também induziu Jesus a pecar para que falhasse na sua missão como Messias (Mt 4.1-11). As táticas de Satanás e seus demônios são as de usar as mentiras (Jo 8.44), o engano (Ap 12.9), o assassinato (Sl 106.37; Jo 8.44) e qualquer outra espécie de atividade destrutiva para provocar nas pessoas o abandono de Deus e a destruição delas próprias. Os demônios tentarão toda tática para cegar as pessoas para o evangelho (2Co 4.4) e mantê-las em escravidão às coisas que as impedem de vir a Deus (Gl 4.8). Eles também usarão tentação, dúvida, culpa, temor, confusão, doença, inveja, orgulho, calúnia ou quaisquer outros meios para impedir o testemunho e a utilidade dos cristãos.
Os demônios são limitados pelo controle de Deus e têm poder limitado.
A história de Jó deixa claro que Satanás poderia fazer somente o que Deus lhe deu permissão para fazer, e nada mais (Jó 1.12; 2.6). Os demônios estão presos “com correntes eternas” (Jd 6) e podem ser vitoriosamente rechaçados pelos cristãos por meio da autoridade que Cristo lhes dá (Tg 4.7: “ Resistam ao Diabo, e ele fugirá de vocês”).
Além disso, o poder dos demônios é limitado. Após rebelarem-se contra Deus, eles não têm o poder que tinham quando eram anjos, porque o pecado é influência enfraquecedora e destrutiva.
O poder dos demônios, embora significativo, é provavelmente menor que o poder dos anjos.
Na área do conhecimento, não devemos pensar que os demônios podem conhecer o futuro ou que eles possam ler nossa mente ou conhecer nossos pensamentos. Em muitos lugares no AT, o Senhor revela-se como o Deus verdadeiro em contraposição aos deuses (demoníacos) das nações pelo fato de que ele somente pode conhecer o futuro : “Lembrem-se das coisas passadas, das coisas muito antigas! Eu sou Deus, e não há nenhum outro; eu sou Deus, e não há nenhum como eu. Desde o início faço conhecido o fim, desde tempos remotos, o que ainda virá” (Is 46.9,10). Nem mesmo os anjos conhecem o tempo do retorno de Jesus (Mc 13.32) , e também não há indicação na Escritura de que eles ou os demônios conheçam qualquer outra coisa a respeito do futuro.
Com respeito a conhecer os nossos pensamentos, a Bíblia nos diz que Jesus conhecia os pensamentos das pessoas (Mt 9.4; 12.25; Mc 2.8; Lc 6.8; 11.17) e que Deus conhece os pensamentos das pessoas (Gn 6.5; Sl 139.2,4,23; Is 66.18), mas não há indicação de que anjos ou demônios possam conhecer os nossos pensamentos. De fato, Daniel disse ao rei Nabucodonosor que nenhuma pessoa falando por outro poder que não o de Deus poderia dizer ao rei o que ele havia sonhado (v. Dn 2.27,28). Mas se os demônios não podem ler a mente das pessoas, como haveremos de entender os relatórios recentes dos bruxos, dos que lêem a sorte ou de outros evidentemente sob influência demoníaca que são capazes de dizer às pessoas os detalhes de sua vida que elas pensavam que ninguém sabia, como, por exemplo, o que haviam comido no café da manhã ou onde haviam guardado secretamente algum dinheiro em sua casa? A maioria dessas coisas pode ser explicada pela percepção de que os demônios podem observar o que acontece no mundo e, provavelmente, deduzir algumas conclusões de suas observações. Um demônio pode saber o que eu comi no café-da-manhã simplesmente por me ver tomando o café-da-manhã! Ele pode saber o que eu disse em uma conversa particular de telefone porque ele ouviu a minha conversa. Os cristãos não devem deixar-se iludir se encontrarem membros do ocultismo ou de outras falsas religiões que parecem demonstrar tal conhecimento de vez em quando. Esses resultados da observação não provam que os demônios possam ler os nossos pensamentos e nada na Bíblia nos leva a pensar que eles tenham esse poder.
Nossa relação com os demônios
Os demônios são ativos no mundo hoje?
Algumas pessoas, influenciadas pela cosmovisão naturalista que somente admite a realidade do que pode ser visto, tocado ou ouvido, negam que os demônios existam hoje. Eles sustentam que anjos e demônios são simplesmente mitos que pertencem à cosmovisão obsoleta ensinada na Bíblia e em outras culturas antigas.
Se, entretanto, a Escritura nos dá o relato verdadeiro do mundo como ele realmente é, então temos de levar a sério sua descrição do intenso envolvimento demoníaco na sociedade humana. Nosso compromisso com os cinco sentidos meramente nos diz que temos algumas deficiências em nossa capacidade de entender o mundo, mas não que os demônios não existam. De fato, não há razão alguma para pensar que há menos atividade demoníaca no mundo hoje do que houve no tempo do NT. Estamos no mesmo período do plano global de Deus para a história (a época da igreja ou a época da nova aliança), e o milênio, quando a influência de Satanás será removida da terra, ainda não veio. Da perspectiva bíblica, a recusa da sociedade moderna em reconhecer a presença da atividade demoníaca hoje deve-se simplesmente à cegueira das pessoas para a verdadeira natureza da realidade.
Mas em que espécie de atividade os demônios estão envolvidos hoje? Há algumas características distintivas que vão nos capacitar a reconhecer a atividade demoníaca quando ela ocorrer?
Nem todo mal e pecado procedem de Satanás e demônios, mas em alguns casos sim.
Se temos a visão da ênfase global das cartas do NT, percebemos que pouco espaço é dado à discussão da atividade demoníaca na vida dos crentes ou aos métodos para resistir e se opor a tal atividade. A ênfase é dizer aos crentes para não pecar, mas viver retamente. Por exemplo, em lCoríntios , quando há o problema das “divisões”, Paulo não diz à igreja para repreender o espírito de divisão , mas simplesmente incita-os a viver concordemente e a serem “unidos num só pensamento e num só parecer” (lCo 1.10). Quando há um problema de incesto, ele não diz aos coríntios para repreenderem um espírito de incesto, mas diz que eles exercessem disciplina para que o ofensor se arrependesse (lCo 5.l-5). Esses exemplos poderiam ser duplicados muitas vezes em outras cartas do NT.
Portanto, embora o NT claramente reconheça a influência da atividade demoníaca no mundo, e mesmo, como veremos, sobre a vida dos crentes, seu foco primário a respeito do crescimento cristão não é a atividade demoníaca, mas as escolhas e ações feitas pelos cristãos (v. tb. Gl 5.16-26; Ef 4.1—6.9; Cl 3.1—4.6 etc.). Similarmente, esse deveria ser o foco principal de nossos esforços hoje, quando lutamos por crescer em santidade e fé, para vencer desejos e ações pecaminosos que permanecem em nossa vida (cf. Rm 6.1-23) e superar as tentações que vêm contra nós provenientes do mundo descrente (lCo 10.13). Precisamos aceitar nossa responsabilidade de obedecer ao Senhor e não culpar as forças demoníacas por nossos atos errados.
Não obstante, várias passagens mostram que os autores do NT estavam definitivamente cônscios da presença da influência demoníaca no mundo e na vida dos cristãos. Paulo advertiu Timóteo que nos últimos dias alguns “abandonarão a fé e seguirão espíritos enganadores e doutrinas de demônios” (1Tm 4.1) e que isso levaria a idéias de proibir o casamento e proibir certas comidas (v. 3), coisas boas que Deus criou para serem recebidas com ações de graça (v. 4). Portanto, ele considerou alguns ensinos falsos como de origem demoníaca. Em 2Timóteo , Paulo sugere que os que se opunham à sã doutrina eram mantidos em cativeiro pelo demônio para cumprirem a vontade dele: “Ao servo do Senhor não convém brigar mas, sim, ser amável para com todos, apto para ensinar, paciente. Deve corrigir com mansidão os que se lhe opõem, na esperança de que Deus lhes conceda o arrependimento, levando-os ao conhecimento da verdade, para que assim voltem à sobriedade e escapem da armadilha do Diabo, que os aprisionou para fazerem a sua vontade” (2Tm 2.24-26).
Semelhantemente Jesus havia asseverado que os judeus que tinham se oposto de modo obstinado a ele estavam seguindo ao seu pai, que é o Diabo: “Vocês pertencem ao pai de vocês, o Diabo, e querem realizar o desejo dele. Ele foi homicida desde o princípio e não se apegou à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8.44).
Em sua primeira carta João salienta que os atos hostis dos descrentes têm influência demoníaca ou possuem às vezes origem demoníaca. Ele faz uma afirmação geral dizendo que “aquele que pratica o pecado é do Diabo” (1Jo 3.8), e continua dizendo: “Desta forma sabemos quem são os filhos de Deus e quem são os filhos do Diabo: quem não pratica a justiça não procede de Deus, tampouco quem não ama seu irmão” (lJo 3.10). Aqui João caracteriza todos os que não são nascidos de Deus como filhos do Diabo e sujeitos à sua influência e desejos.
Quando combinamos todas essas afirmações, vemos que Satanás é visto como o originador das mentiras, dos assassínios, do engano, do falso ensino e do pecado em geral. Por causa disso, parece razoável concluir que o NT quer que entendamos que há algum grau de influência demoníaca em todas as coisas erradas e pecados que ocorrem hoje. Nem todo pecado é causado por Satanás ou pelos demônios, nem a atividade demoníaca é a principal influência ou a causa do pecado, mas a atividade demoníaca é provavelmente um elemento presente em quase todo pecado e em quase toda atividade destrutiva que se opõe à obra de Deus no mundo hoje.
Na vida dos cristãos, como já observamos, a ênfase do NT não é sobre a influência dos demônios, mas sobre o pecado que permanece na vida deles. No entanto, devemos reconhecer que o pecado (mesmo para os cristãos) oferece ponto de apoio para alguma espécie de influência demoníaca em nossa vida. Assim, Paulo pôde dizer: “‘Quando vocês ficarem irados, não pequem’. Apaziguem a sua ira antes que o sol se ponha, e não deem lugar ao Diabo” (Ef 4.26,27). A ira pecaminosa aparentemente pode dar oportunidade para o Diabo (ou demônios) exercer alguma influência negativa em nossa vida — talvez atacando-nos na área de nossas emoções ou talvez por aumentar a ira pecaminosa que já sentimos contra outras pessoas. Semelhantemente, Paulo menciona “a couraça da justiça” (Ef 6.14) como parte da armadura que temos de usar contra “as ciladas do Diabo” e na luta “contra os poderes e autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais” (Ef 6.11,12). Se possuirmos áreas de contínuo pecado em nossa vida, há fraquezas e buracos em nossa “couraça da justiça”, e nessas áreas é que somos vulneráveis ao ataque demoníaco. Jesus, ao contrário, que estava perfeitamente livre do pecado, pôde dizer de Satanás: “Ele não tem nenhum direito sobre mim” (Jo 14.30). Podemos também observar a conexão em lJoão 5.18 entre não pecar e não ser tocado pelo maligno: “Sabemos que todo aquele que é nascido de Deus não está no pecado;6 aquele que nasceu de Deus o protege, e o Maligno não o atinge”.
O cristão pode ser possuído pelo demônio?
O termo “possessão demoníaca” é um termo infeliz que aparece em algumas traduções da Bíblia, mas não reflete realmente o texto grego. O NT grego pode falar de pessoas que “têm demônio” (Mt 11.18; Lc 7.33; 8.27; Jo 7.20; 8.48,49,52; 10.20), ou pode falar de pessoas que estão sofrendo por causa de influência demoníaca (a expressão grega é daimonizomai ), porém a Bíblia nunca usa uma linguagem que sugira que um demônio realmente “possui alguém”.
O problema com ambos os termos, possessão demoníaca e endemoninhado, é que eles conotam uma influência demoníaca tão forte que parece insinuar que a pessoa que está sob o ataque demoníaco não tem escolha senão sucumbir ao demônio. Eles sugerem que a pessoa não mais é capaz de exercer sua vontade e está completamente sob domínio do espírito mau. Embora isso possa ser verdade em casos extremos, como o do endemoninhado de Gadara (v. Mc 5.1-20; observe que, após Jesus ter expulsado os demônios, ele ficou “em perfeito juízo”, v. 15), certamente não é o que acontece em muitos casos de ataque demoníaco ou conflito com demônios na vida de diversas pessoas. Assim, como responderemos à pergunta “Um crente pode ser possuído pelo demônio?”. Embora a minha preferência não seja, de forma alguma, o uso do termo possessão demoníaca seja qual for a situação, a resposta a essa pergunta dependerá do que se quer dizer por “possessão demoníaca”. Se por ela se entende que a vontade de uma pessoa fica completamente dominada por um demônio, de forma que essa pessoa não tenha nenhum poder de escolha para fazer o certo e obedecer a Deus, então a resposta com respeito ao cristão ser possuído pelo demônio é negativa, porque a Escritura assegura que o pecado não terá domínio sobre nós, já que fomos ressuscitados com Cristo (Rm 6.14; v. tb. v. 4,11).
A maioria dos cristãos, por outro lado, concorda que pode haver diferentes graus de ataque ou influência demoníaca na vida dos crentes. O crente pode em certas ocasiões ficar sob ataque demoníaco mais forte ou mais suave. (Observe a “filha de Abraão” a quem Satanás mantinha encurvada por dezoito anos de forma que, por causa desse espírito de enfermidade, ela não podia endireitar-se [Lc 13.11,16].) Embora os cristãos após o Pentecoste tenham poder mais pleno [A palavra daimonizomai, que pode ser traduzida por “estar sob a influência demoníaca” ou estar endemoninhados, ocorre treze vezes no NT, todas elas nos evangelhos (Mt 4.24; 8.16,28,33; 9.32; 12.22; 15.22 [“endemoninhada”]; Mc 1.32; 5.15,16,18; Lc 8.36; Jo 10.21). Todos esses exemplos parecem indicar a influência demoníaca muito grave. À luz disso, talvez seja melhor reservar a palavra endemoninhado para casos mais extremos ou graves. A palavra endemoninhado parece-me sugerir influência ou controle demoníaco muito forte. (V. outras palavras similares com o sufixo “izado”: pasteurizado, homogeneizado, tiranizado, materializado, nacionalizado etc. Todas essas palavras falam de uma transformação total no objeto a que se referem, não apenas de uma influência moderada ou suave.) Mas tornou-se comum em parte da literatura cristã de hoje descrever pessoas sob qualquer espécie de ataque do maligno como “endemoninhado”. Seria mais sábio reservar o termo para casos mais graves de influência demoníaca, a fim de que nossa linguagem não sugira uma influência mais forte do que realmente ocorre.] do Espírito Santo trabalhando dentro deles para capacitá-los a triunfar sobre os ataques demoníacos, eles nem sempre invocaram esse poder ou nem mesmo conheceram a respeito do poder que por direito lhes pertence. Faríamos bem em evitar a categorização dessa influência com os termos possessão demoníaca (assim como outros termos como oprimido ou atormentado), para simplesmente reconhecer que pode haver graus variados de ataque ou de influência demoníaca sobre pessoas, mesmo sobre cristãos, e não acrescer mais nada. Em todos os casos, o remédio será sempre o mesmo: repreenda o demônio em nome de Jesus e ordene que saia.
Jesus concede a todos os crentes a autoridade para repreender os demônios e para ordenar-lhes que saiam.
Quando Jesus enviou os doze discípulos adiante dele para pregar o Reino de Deus, ”deu-lhes poder e autoridade para expulsar todos os demônios” (Lc 9.1). Após os setenta terem pregado sobre o Reino de Deus nas cidades e aldeias, eles retornaram com alegria, dizendo: ”Senhor, até os demônios se submetem a nós, em teu nome” (Lc 10.17) , e Jesus lhes disse: ”Eu lhes dei autoridade […] sobre todo o poder do inimigo”(Lc 10.19). Quando Filipe, o evangelista, desceu para Samaria para pregar o evangelho de Cristo , ”os espíritos imundos saíam de muitos, dando gritos” (At 8.7), e Paulo usou a autoridade espiritual sobre os demônios para dizer ao espírito de adivinhação que estava em uma jovem adivinhadora: “Em nome de Jesus Cristo eu lhe ordeno que saia dela!” (At 16.18).
Paulo estava cônscio da autoridade espiritual que possuía, tanto nos encontros face a face como o de Atos 16 , como também em sua vida de oração. Ele disse: “Pois, embora vivamos como homens, não lutamos segundo os padrões humanos. As armas com as quais lutamos não são humanas; ao contrario, são poderosas em Deus para destruir fortalezas” (2Co 10.3,4). Além disso, ele falou em alguma medida da luta que os cristãos têm contra “as ciladas do Diabo” em sua descrição do conflito “contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais” (v. Ef 6.10-18). Tiago fala a todos os seus leitores (em muitas igrejas): “Resistam ao Diabo, e ele fugirá de vocês” (Tg 4.7). Semelhantemente, Pedro diz a seus leitores em muitas igrejas na Ásia Menor: “Estejam alertas e vigiem. O Diabo, o inimigo de vocês, anda ao redor como leão, rugindo e procurando a quem possa devorar. Resistam-lhe, permanecendo firmes na fé” (lPe 5.8,9).
É importante que reconheçamos que a obra de Cristo na cruz é a base definitiva para a nossa autoridade sobre os demônios. Embora Cristo tenha ganho a vitória sobre Satanás no deserto, as cartas do NT apontam para a cruz como o momento em que Satanás foi definitivamente derrotado. Jesus assumiu a natureza humana (carne e sangue) “para que, por sua morte, derrotasse aquele que tem o poder da morte, isto é, o Diabo” (Hb 2.14). Na cruz, Deus, “tendo despojado os poderes e as autoridades, fez deles um espetáculo público, triunfando sobre eles na cruz” (Cl 2.15). Portanto, Satanás odeia a cruz de Cristo, porque lá ele foi inquestionavelmente derrotado para sempre. Por causa da morte de Cristo na cruz, nossos pecados são perdoados por completo, e Satanás não possui autoridade nem direito sobre nós.
[É bom acrescentar que, se há algum pecado específico que tenha dado lugar à influência do demônio, o pecado deve ser confessado e abandonado (v. anteriormente). Mas nem todo ataque demoníaco pode ser ligado a pecado específico, já que o próprio Jesus foi severamente tentado por Satanás, como aconteceu com Eva antes da queda].
Ainda mais, nossa posição como filhos na família de Deus é a posição espiritual firme pela qual lutamos em nossa batalha espiritual. Paulo diz a todo cristão: “Todos vocês são filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus” (Gl 3.26). Quando Satanás vem para atacar-nos, ele está atacando um dos filhos do próprio Deus, um membro da família divina. Essa verdade dá-nos autoridade para derrotá-lo e enfrentar a guerra contra ele com muito sucesso.
Se como crentes achamos apropriado falar uma palavra de repreensão ao demônio, é importante que nos lembremos de que não precisamos temer os demônios. Embora Satanás e os demônios tenham muito menos poder que o Espírito Santo que opera dentro de nós, uma das táticas de Satanás é tentar causar medo em nós. Em vez de ceder a tal temor, os cristãos devem lembrar as verdades da Escritura, que nos dizem: ”Filhinhos, vocês são de Deus e os venceram, porque aquele que está em vocês é maior do que aquele que está no mundo” (lJo 4.4); e: “Pois Deus não nos deu um espírito de covardia, mas de poder, de amor e de equilíbrio” (2Tm 1.7). Paulo diz aos efésios que em sua batalha espiritual eles devem usar o “escudo da fé”, para que possam “apagar todas as setas inflamadas do Maligno” (Ef 6.16). Isso é muito importante, visto que o oposto do temor é a fé em Deus. Ele também lhes diz para serem intrépidos em sua luta espiritual, de forma que, tendo tomado toda a armadura de Deus, pudessem “resistir no dia mau e permanecer inabaláveis, depois deterem feito tudo” (Ef 6.13). Paulo diz que os cristãos, em seu conflito contra as forças espirituais hostis, não devem bater em retirada ou se encolher de medo, mas permanecer intrepidamente no seu lugar, sabendo que suas armas e sua armadura “não são humanas; ao contrário, são poderosas em Deus para destruir fortalezas” (2Co 10.4; cf. lJo 5.18).
Na realidade, essa autoridade de repreender demônios pode resultar em uma breve ordem ao espírito maligno para ir embora quando suspeitamos da presença de influência demoníaca em nossa vida pessoal ou na vida dos que nos cercam. Devemos resistir ao Diabo (Tg 4.7), e ele fugirá de nós. Há ocasiões em que uma breve ordem no nome de Jesus será suficiente. Outras vezes será de grande utilidade citar as Escrituras no processo de ordenar ao espírito para que abandone aquela situação. Paulo fala da “ espada do Espírito, que é a palavra de Deus” (Ef 6.17) . E Jesus, quando foi tentado por Satanás no deserto, repetidamente citou as Escrituras em resposta às tentações do Diabo (Mt 4.1-11). Entre os textos apropriados da Escritura podem ser incluídas afirmações gerais do triunfo de Jesus sobre Satanás (Mt 12.28,29; Lc 10.17-19; 2Co 10.3,4; Cl 2.15; Hb 2.14; Tg 4.7; lPe 5.8,9; lJo 3.8; 4.4; 5.18), mas também versículos relacionados diretamente à tentação particular ou dificuldade iminente.
É importante lembrar que o poder de expulsar demônios não vem da nossa força ou do poder de nossa própria voz, mas do Espírito Santo (Mt 12.28; Lc 11.20) . Além disso, Jesus emite uma advertência clara de que não devemos nos regozijar demais ou nos tornar orgulhosos de nosso poder sobre os demônios, mas que antes devemos nos regozijar em nossa grande salvação. Devemos manter isso claro em nossa mente para que não nos tornemos orgulhosos e o Santo Espírito não venha a retirar de nós esse poder. Quando os setenta discípulos retornaram com alegria dizendo: “Senhor, até os demônios se submetem a nós, em teu nome” (Lc 10.17), Jesus lhes disse: “Contudo, alegrem-se, não porque os espíritos se submetem a vocês, mas porque seus nomes estão escritos nos céus” (Lc 10.20). Devemos viver na expectativa de o evangelho vir com poder para triunfar sobre as obras do Diabo. Quando Jesus veio pregando o evangelho na Galiléia, “de muitas pessoas saíam demônios” (Lc 4.41). Quando Filipe foi a Samaria para pregar o evangelho, “os espíritos imundos saíam de muitos, dando gritos” (At 8.7). Jesus comissionou Paulo para pregar entre os gentios “para abrir-lhes os olhos e convertê-los das trevas para a luz, e do poder de Satanás para Deus, a fim de que recebam o perdão dos pecados e herança entre os que são santificados pela fé em mim” (At 26.18). Segundo Paulo, sua mensagem e pregação “não consistiram de palavras persuasivas de sabedoria, mas consistiram de demonstração do poder do Espírito, para que a fé que vocês têm não se baseasse na sabedoria humana, mas no poder de Deus” (lCo 2.4,5; cf. 2Co 10.3,4). Se realmente cremos no testemunho da Escritura a respeito da existência e da atividade dos demônios e se realmente cremos que “para isso o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do Diabo” (lJo 3.8), então parece apropriado esperar que mesmo hoje, quando o evangelho é proclamado a descrentes e quando a oração é feita por crentes que talvez não estejam conscientes desta dimensão de conflito espiritual, poderá haver triunfo genuíno e muitas vezes imediatamente reconhecível sobre o poder do inimigo. Devemos esperar que essa vitória aconteça, imaginá-la como parte normal da obra de Cristo no desenvolvimento do seu Reino e nos regozijar nela.
Extraído da Teologia Sistemática de Wayne Grudem
quinta-feira, 27 de junho de 2019
Demônios e sua origem
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